regressar

chegar a casa é uma tarefa difícil, arenosa, que arde na pele e no coração, e nos encolhe a alma, quando somos obrigados a desistir, a bater com a porta a nós mesmos, apenas e só com o objectivo de regressar .

 desistir deve ser o verbo com mais espinhos que existe, dói só de pensar que o temos de conjugar a nós mesmos, num presente que será passado, mas que custa tanto a ser atingido .

 quando desisti de ti, quando decidi que a tua casa não era o meu lar, toda a minha alma petrificou só de pensar que amanhã eu poderia já não te ter, certo e seguro, do outro lado da cama, perto da tua mesa de cabeceira, adormecido sobre a paixão já morta, e sobre todas as cinzas que a nossa felicidade deixara . 

 custa quando nos fecham a porta, mas custa mil vezes mais, quando temos de fechar a porta a nós mesmos . o nosso corpo passa a algo incandescente, que derrete aos poucos sobre aquilo que idealizámos um dia, juntos e felizes, perto do porto seguro que pensamos ser a nossa vida . 

 quando chega o derradeiro momento, o nosso ser reduz-se a algo microscópico,  incapaz de raciocinar, de querer algo mais do que um conforto, uma segurança, uma chávena de chá quente para acalmar os ânimos, um cobertor leve que nos leve dali, envolvidos na segurança que queríamos, mas que por infelicidade não encontrá-mos .

e como somos seres de hábitos, amanhã, quando os nossos deveres já se encontrarem cumpridos, vamos sentir uma enorme dor, uma cratera enorme que não se preenche, nem com o chá quente, nem com as palmadinhas das costas daqueles que sabem o que queremos ouvir, nem com a certeza de que amanhã será melhor . desistir implica força e coragem, que ninguém tem de reserva, há que procurar, há que querer sempre mais e melhor, primeiro para nós, e só depois para os outros . 

mas como isso é cientificamente e emocionalmente impossível, fica-mo-nos por aqui, quietos e mudos, à espera que a dor decida ir embora, para só depois, nós podermos regressar .